Durante anos ouvimos dizer que “um copo de vinho por dia faz bem ao coração”. Outros juram que a cervejinha ao jantar ajuda a relaxar. Mas um novo estudo publicado na BMJ Evidence-Based Medicine vem pôr tudo isso em causa: não existe dose segura de álcool quando o assunto é o cérebro.
O que o estudo descobriu
Investigadores do Reino Unido e dos Estados Unidos analisaram os hábitos de consumo de álcool e o risco de demência em mais de 559 mil pessoas. O objetivo era perceber se o álcool, mesmo em pequenas quantidades, poderia estar ligado a um maior risco de desenvolver demência.
Além dos dados observacionais (em que se observa o comportamento das pessoas), os cientistas aplicaram uma técnica genética chamada “Mendelian randomisation”, que permite testar causalidade - ou seja, perceber se o álcool é mesmo a causa do problema e não apenas uma coincidência.
Resultados principais
Os dados observacionais voltaram a mostrar a famosa curva em “U”: quem não bebia nada e quem bebia muito tinham maior risco, enquanto o consumo moderado parecia “protetor”.
Mas os investigadores notaram algo importante: muitos dos “não consumidores” eram ex-bebedores que tinham parado por motivos de saúde - um viés conhecido como “sick quitter”. Quando esse fator foi corrigido, a suposta proteção do álcool desapareceu.
Já a análise genética revelou outra realidade: quanto maior a predisposição genética para beber mais, maior o risco de demência.
O risco aumentava de forma linear, sem qualquer ponto de segurança identificável. Ou seja, não há um limite abaixo do qual o consumo possa ser considerado seguro.
Os investigadores estimam que, se os distúrbios relacionados com o álcool fossem reduzidos para metade, poderiam ser prevenidos até 16% dos casos de demência associados ao consumo.
Nem tudo é preto e branco
Nenhum estudo é perfeito, e este também tem limitações.
A Mendelian randomisation depende de pressupostos fortes - por exemplo, de que os genes associados ao consumo de álcool influenciam o risco de demência apenas através desse consumo, o que nem sempre é totalmente garantido.
Além disso, o consumo de álcool é frequentemente subestimado nos questionários, e o diagnóstico de demência pode variar de precisão.
Mesmo assim, o peso das evidências é consistente: o álcool não traz benefícios cognitivos e, muito provavelmente, qualquer quantidade consumida de forma regular aumenta o risco de envelhecimento cerebral acelerado.
E os estudos que dizem que o consumo leve é bom?
Durante muito tempo, alguns estudos apontaram que beber pequenas quantidades de álcool poderia estar associado a um menor risco de doenças cardiovasculares e até a uma melhor performance cognitiva.
Mas revisões recentes mostram que esses efeitos “protetores” desaparecem quando se controlam melhor os fatores de estilo de vida e nível socioeconómico. Pessoas que bebem moderadamente tendem a ter também outros hábitos saudáveis - o que explica a diferença.
Além disso, estudos de imagem cerebral têm mostrado que mesmo o consumo ligeiro a moderado pode estar associado a alterações estruturais no cérebro, como redução do volume da substância cinzenta e aumento do depósito de proteínas ligadas à doença de Alzheimer.
O que isto significa na prática
Dizer que “não há dose segura” não significa que um copo ocasional vá causar demência.
Significa apenas que não existe uma quantidade que se possa afirmar com confiança que não aumenta o risco. O álcool é uma substância neurotóxica - e o cérebro não tem mecanismos eficientes para reparar o dano neuronal causado por ele.
O risco depende também de outros fatores: genética, idade, doenças cardiovasculares, inflamação crónica, défice de sono e estilo de vida.
Mas uma coisa é certa: quanto menos álcool, melhor para o cérebro.
Como proteger o cérebro
Se o objetivo é envelhecer com boa memória, lucidez e energia, há escolhas que valem mais do que qualquer bebida:
- Reduz o consumo ao mínimo possível - e, se conseguires, elimina-o.
- Evita o binge drinking (beber muito numa única ocasião).
- Dorme bem e mantém horários regulares de sono.
- Faz exercício físico com frequência - o movimento protege o cérebro.
- Alimenta-te com base em comida real: frutas, legumes, gorduras boas, proteínas magras.
- Treina o cérebro: aprende, lê, conversa, questiona.
- E lembra-te: o “copinho do bem” pode ser simpático socialmente, mas não é um elixir de saúde.
Conclusão
Não há dose segura de álcool para o cérebro.
Mesmo pequenas quantidades, quando consumidas com regularidade, aumentam o risco de envelhecimento cerebral e demência.
O prazer momentâneo pode custar caro a longo prazo - especialmente quando falamos de algo tão valioso como a nossa capacidade de pensar, lembrar e decidir.
Referências
- Topiwala A, Levey DF, Zhou H, et al. Alcohol use and risk of dementia in diverse populations: evidence from cohort, case–control and Mendelian randomisation approaches. BMJ Evidence-Based Medicine. 2025. doi:10.1136/bmjebm-2025-113913
- University of Oxford, Nuffield Department of Population Health. Any level of alcohol consumption increases risk of dementia. 2025. Disponível em: ndph.ox.ac.uk/news
- News Medical. Alcohol raises dementia risk at every level of drinking, genetic study shows. 2025. Disponível em: news-medical.net
- Science Media Centre. Expert reaction to study looking at the association between any amount of alcohol consumption and risk of dementia. 2025. Disponível em: sciencemediacentre.org
- JAMA Network Open. Association of Light to Moderate Alcohol Consumption With Risk of Dementia. 2024. Disponível em: jamanetwork.com
- Frontiers in Aging Neuroscience. Reassessing cognitive outcomes of moderate drinking after controlling for socioeconomic factors. 2025. Disponível em: frontiersin.org
- European Journal of Nutrition. Moderate alcohol consumption and brain β-amyloid deposition: A population-based study. 2025. Disponível em: link.springer.com