Desigualdades em atividade física e peso começam na infância? O que a ciência nos diz

Desigualdades em atividade física e peso começam na infância? O que a ciência nos diz

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Um grande estudo de coorte acompanhou mais de quatro mil crianças dos 1 aos 7 anos e mostrou que as desigualdades em atividade física e IMC aparecem muito cedo. Rapazes e crianças de contexto socioeconómico mais baixo foram, em média, mais ativos, mas isso não impediu trajetórias de IMC mais altas em alguns destes grupos. As diferenças não se explicam só por mexer mais ou menos e apontam para o papel do ambiente, da alimentação e da desigualdade social.

 

O estudo em detalhe: quem, como e o que foi medido

As crianças foram avaliadas várias vezes entre o 1.º e o 7.º aniversário.
A atividade física foi medida com acelerómetros de pulso e o estado ponderal com IMC-para-idade. Para analisar desigualdades, os investigadores observaram sexo, uma classificação de cor de pele como proxy de raça e um índice de bens como indicador do estatuto socioeconómico. Com estes dados, modelaram trajetórias de atividade e de IMC ao longo do tempo.

Principais resultados

  • Rapazes foram mais ativos do que raparigas em todas as idades.
  • A partir dos 2 anos, crianças negras e pardas e crianças de famílias com menos recursos moveram-se mais do que as de famílias com mais recursos.
  • Aos 4 e 7 anos, as crianças de famílias com menos recursos apresentaram, em média, IMC mais baixo do que as de famílias com mais recursos.
  • Nas trajetórias ao longo do tempo, raparigas ficaram mais vezes em grupos de baixa atividade. Rapazes, crianças negras e pardas e crianças de menor estatuto socioeconómico surgiram com frequência nos grupos de atividade mais alta, mas rapazes e crianças negras e pardas foram também mais prevalentes nos grupos de IMC mais alto.

Conclusão rápida: desigualdades existem cedo, são multidimensionais e nem sempre seguem a ideia simplista de que quem se mexe mais pesa menos.

 

Como interpretar estes padrões

É tentador concluir que basta promover atividade física. O estudo mostra que não chega. Mesmo com mais movimento, alguns grupos mantiveram trajetórias de IMC mais elevadas. Isto aponta para outros fatores com grande peso: qualidade e custo da alimentação, marketing de ultraprocessados, padrões de sono, tempo de ecrã, segurança do bairro, acesso a espaços de brincar e a contextos educativos com rotinas ativas. Em linguagem de saúde pública, falamos de determinantes sociais da saúde.

 

O que dizem as orientações internacionais

  • Dos 0 aos 5 anos: dias com muito brincar ativo, pouco tempo sedentário e sono adequado.
  • Dos 5 aos 17 anos: pelo menos 60 minutos diários de atividade física moderada a vigorosa, com atividades que reforcem músculos e ossos ao longo da semana.
    Estas recomendações aplicam-se a todas as crianças e devem ser adaptadas ao contexto familiar e escolar.

 

E em Portugal, um retrato sucinto

A vigilância nacional aponta para prevalências relevantes de excesso de peso e obesidade em idades escolares. Em termos simples, cerca de uma em cada três crianças apresenta excesso de peso. As diferenças por sexo tendem a existir, com valores muitas vezes mais elevados nos rapazes. Há também gradientes sociais consistentes: contextos socioeconómicos mais desfavorecidos acumulam mais barreiras a estilos de vida saudáveis.

 

O que fazer: recomendações práticas e políticas públicas

1) Intervir cedo e de forma integrada

  • Creches e pré-escolar ativos: blocos diários de brincadeira livre e estruturada, tempo ao ar livre, formação de educadores para movimento em idade precoce.
  • Rotina das 24 horas: combinar muito movimento, pouco ecrã e sono suficiente, todos os dias.

2) Alimentação acessível e saudável

  • Ambiente alimentar: limitar a exposição a bebidas e snacks açucarados e facilitar o acesso a fruta, legumes e refeições completas em escolas e ATL.
  • Políticas fiscais e de compra pública: taxação de bebidas açucaradas acompanhada de reformulação e regras de aquisição alimentar mais saudáveis para cantinas e bares escolares.

3) Espaço público que convida a mexer

  • Urbanismo amigo das crianças: ruas mais calmas, parques próximos, percursos seguros para ir a pé ou de bicicleta para a escola.
  • Programas locais: clubes de atividade física gratuitos ou a baixo custo em juntas de freguesia e associações.

4) Foco na equidade

  • Intensidade proporcional à necessidade: programas universais, mas com mais apoio onde a vulnerabilidade é maior.
  • Apoios diretos: reforço de alimentação escolar, vales para atividades físicas, horários estendidos gratuitos para brincadeira ativa.

5) Profissionais e plataformas digitais

  • Equipas de saúde, escolas e apps devem combinar:
    • mensagens alinhadas com as orientações por idade
    • registo simples do sono e do tempo de ecrã em paralelo com a atividade
    • educação alimentar prática centrada no ambiente real da família
    • referenciação para apoio social quando a barreira é económica ou logística.

 

Limitações a ter em conta

  • Generalização: os resultados derivam de uma única coorte, num contexto urbano específico. Precisam de replicação noutros cenários.
  • Medidas de raça e estatuto socioeconómico: a cor da pele foi usada como proxy de raça e o índice de bens como proxy de rendimento. São medidas úteis em epidemiologia, embora imperfeitas.
  • IMC como indicador: é adequado para vigilância populacional, mas não distingue massa gorda de massa isenta de gordura. Quando possível, combinar com medidas de composição corporal.
  • Causalidade: trata-se de um desenho observacional. Descreve padrões e associações, não prova causa-efeito.

 

Conclusão

As desigualdades em atividade física e peso não começam na adolescência. Começam cedo. Rapazes movem-se mais do que raparigas, crianças de meios menos favorecidos podem ser mais ativas e, ainda assim, algumas mantêm trajetórias de IMC mais altas. A mensagem central é clara: não basta dizer mexe-te. Precisamos de políticas e programas que alinhem movimento, alimentação, sono e tempo de ecrã, e que reduzam barreiras sociais e económicas. Portugal tem instrumentos importantes na escola, na saúde e no espaço público. O passo decisivo é garantir que chegam primeiro a quem mais precisa.

 

Referências bibliográficas

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