O “lado negativo” das vacinas: quando o sucesso nos dá memória curta
Há uma ideia simples que explica muito do barulho à volta das vacinas: quando a prevenção funciona, o perigo sai de cena e a nossa memória encolhe. Antes da vacinação em massa, morrer de doenças infecciosas era comum. Hoje quase não vemos esses cenários e, por isso, subestima-se o benefício e supervaloriza-se um braço dorido.
Contexto: há quem diga que é tudo uma conspiração
Existem movimentos contra as vacinas que as pintam como parte de uma conspiração mundial, alimentada por interesses económicos ou controlo. É uma narrativa simples, emocional e viral. O problema é que ignora décadas de evidência, sistemas de segurança independentes e um facto teimoso: sempre que baixamos a cobertura vacinal, as doenças regressam.
Como era antes das vacinas
Varíola. Última infeção natural em 1977, erradicada em 1980. A única doença humana eliminada do mapa. Sem vacinas, continuaria a desfigurar e a matar milhões.
Poliomielite. Desde 1988 os casos caíram mais de 99 por cento. Hoje a circulação endémica do vírus selvagem está limitada a uns poucos focos. Milhões caminham sem sequelas graças à vacinação.
Sarampo. Perigosíssimo e hipercontagioso. Entre 2000 e 2023, a vacinação evitou dezenas de milhões de mortes. Mesmo assim, em 2023 morreram mais de 100 mil pessoas, na maioria crianças sem vacinação completa.
Como funcionam as vacinas, sem blá blá
As vacinas mostram ao sistema imunitário um “cartaz de procurado” inofensivo do micróbio. O corpo aprende, cria anticorpos e memória imunitária. Quando o verdadeiro aparece, a resposta é rápida e eficaz. A isto soma-se o efeito comunitário: se muita gente está protegida, o vírus fica sem estrada para circular e quem não pode ser vacinado beneficia.
Riscos existem, mas são raros e vigiados
Efeitos adversos ligeiros são comuns e autolimitados. Reações graves são raras. A anafilaxia ronda cerca de um caso por milhão de doses em muitas vacinas. Para vacinas mRNA da covid, a estimativa anda perto de cinco por milhão. Profissionais estão treinados para reconhecer e tratar estes eventos e existe farmacovigilância ativa para monitorizar a segurança em tempo real.
O que falha quando baixamos a guarda
Doenças como o sarampo precisam de coberturas altíssimas. Quebras de vacinação criam “bolsas” de suscetíveis. Entra um caso, aparecem dezenas. E controlar um surto consome recursos que podiam estar a tratar outras doenças.
Portugal, em concreto
Portugal tem um Programa Nacional de Vacinação universal e gratuito desde 1965, com coberturas geralmente elevadas. Em 2024, depois de dois anos sem casos, surgiram 35 casos de sarampo. Foi um lembrete simples: boa cobertura protege, relaxar abre a porta a regressos indesejados. O que fazer já: confirmar o boletim, regularizar atrasos e seguir o calendário recomendado pelo PNV.
Como falar com quem tem dúvidas
· Ouvir primeiro. Muitas objeções são medo genuíno.
· Contextualizar o risco. Um em milhão não é zero, mas é muito menos do que o risco da própria doença.
· Relembrar a história. Mostrar o antes e o depois ajuda a calibrar perceções.
· Apontar fontes fiáveis. DGS, SNS, OMS, CDC. Menos caixas de comentários, mais conversas calmas.
Mitos rápidos e factos
“Melhor é ganhar imunidade natural.” Para sarampo, tétano ou polio, isso implica arriscar pneumonia, encefalite, paralisia ou morte. A vacina treina sem a roleta russa.
“Muitas vacinas sobrecarregam o sistema imunitário.” O sistema imunitário lida com milhares de antigénios todos os dias. As vacinas adicionam uma gota organizada nesse oceano.
“Tiomersal/mercúrio.” Onde existiu, foi removido ou está presente em formas e quantidades seguras, com décadas de monitorização.
“Vacinas causam autismo.” Não causam. A evidência robusta e repetida não encontra associação.
Perguntas rápidas que recebo muitas vezes
As reações graves não estarão subnotificadas? Existem sistemas de notificação obrigatória e equipas treinadas. Em Portugal, há procedimentos de observação pós-vacinação precisamente para detetar e tratar o raro que pode acontecer.
Por que é que o sarampo está a voltar nalguns sítios? Por quebras de cobertura, atrasos nos esquemas e informação enganosa. O vírus aproveita qualquer falha.
E se eu perdi doses? Fala com o teu médico ou centro de saúde. Há esquemas de recuperação. Começa hoje e apanha o comboio.
Checklist rápida
· Verifica o boletim de vacinas.
· Se estiver incompleto, marca consulta no teu centro de saúde.
· Mantém-te atento a alertas oficiais da DGS e do SNS.
· Se trabalhas com crianças, atletas ou públicos vulneráveis, garante que tu e a tua equipa estão em dia.
Em resumo
As vacinas são vítimas do próprio sucesso. Tiraram de cena doenças devastadoras e, com isso, apagaram da memória coletiva o antes e o depois. Manter a vacinação em dia é uma das decisões de saúde mais custo-efetivas para ti, para a tua família e para a comunidade.